‘Das tripas coração’ é ódio e poesia
Grande vencedor do V Prêmio Pernambuco de Literatura / Prêmio Hermilo Borba Filho, ‘Das tripas coração’ integra a pequena lista de 4 livros premiados de autoria feminina, num universo de 35 escritos por homens. O trabalho de Ezter Liu vem arrematar as resenhas feitas pelo blog Cerebro y Tripas sobre ‘O dia em que fui santa Joana dos Matadouros’, de Jussara Salazar, ‘Manuscritos em grafite’ de Rejane Pascoal e ‘A mulher do tempo’ de Renata Santana.
Não é incrível dizer que todos eles trazem silêncios, assim mesmo, no plural. De mães abandonadas pelos companheiros, exauridas pela maternidade; de meninas, mulheres e idosas abusadas, estupradas e revitimizadas pelo julgamento da sociedade; das vítimas de violência doméstica; de mulheres que escolhem não ser mães.
A autora reuniu todas elas em seu livro e deu-lhes voz em 18 contos perfeitamente orquestrados entre si, a despeito da subjetividade de cada personagem e do ineditismo de suas experiências. Conduziu-lhes a uma fábrica abandonada e, dessa vez, elas acenderam a fogueira onde foram queimados as instituições de vigilância dos corpos e mentes femininas; a sociedade em que os cargos de liderança são ocupados por homens e que considera imoral a liberdade de uma mulher.
É difícil desenredar-se de séculos de opressão e anonimato, como nos mostra Géssica, engessada em todos os âmbitos de sua existência; e Cida que tem medo de ser abandonada pelos seus fantasmas; ou a atendente da casa dos parafusos que vive uma relação simbiótica com a exploração do próprio trabalho.
‘Das tripas coração’ é, dentre todas as nove edições do Prêmio Hermilo Borba Filho de Literatura, o único trabalho assinado por uma mulher a ocupar a categoria “grande vencedor” do concurso. Isso nos lança perguntas, “onde estão as escritoras pernambucanas?”, “Quem lhes calou a boca?”, “Quem lhes fez duvidar da capacidade de escrever?” e “lhes falou que o amor é o apego a uma rachadura no chão da casa que aumenta todos os dias?”. “Quem foi…?”, “Quem…?”
São perguntas literais feitas ora pela voz narrativa ora pela voz da autora, numa escrita de faltar o folêgo, musical e cadente como em ‘Vulvas brancas de papel’, endurecida, como em ‘Fumaça’, visceral como em ‘Das tripas coração’. E em meio a tudo isso, Liu e as mulheres dentro das personagens e as personagens dentro do universo feminino, curvilíneas ou mistas, jamais retilíneas, exercem, sem medo, seu direito de odiar e de fazer poesia.
Nenhum comentário: