Fatos da atualidade e memórias de Salgueiro são matérias-primas para o universo ficcional de “Estão matando os meninos”

 


O livro de contos e crônicas ‘Estão matando os meninos’ realiza de forma magistral o casamento entre casos de violência contra crianças veiculados na mídia do Brasil e do mundo e as memórias de uma Salgueiro quase mítica, que Raimundo Carrero chegou a relatar, a mim, em conversa informal, como a sua ‘Macondo’, em referência à obra Cem Anos de Solidão de Gabriel Garcia Marques.


Fustigado pela realidade, Carrero tem o hábito de escrever diante dos noticiários e um histórico de duas décadas como jornalista, em um diário impresso. Some-se a essa conexão com os acontecimentos do seu tempo, a relação de afeto com a Salgueiro da sua infância e parte da adolescência.


Causam-lhe sensibilidade e revolta as mortes de crianças em operações policiais contra traficantes no Rio de Janeiro. João Pedro e Ághata, por exemplo, foram o ponto de partida para os contos ‘Artesão’ e ‘Meninos ao alvo, atirar!’. Eles estão na gênese das histórias sobre Jorge e Emanuelle.


Outro caso foi o do menino negro morto pela negligência da patroa branca de sua mãe. Na ‘transfiguração’ da notícia, a fantasia de ser um jogador de futebol, numa partida imaginária e a comemoração de um gol, “dando aquele murro no ar, solto ao vento.” Pulando para o alto de um edifício de luxo e para sempre.


Da realidade real para a realidade fictícia e autônoma, um amontoado de experiências, algumas vividas pessoalmente, outras apenas ouvidas, vão confluindo para a imaginação de Carrero para serem remontadas, em direção à criação. Foi assim com João dos aviões, personagem real da mítica Salgueiro de Carrero, cidade que, na ficção, originou Arcassanta.


No conto ‘Caos de fogo’, há uma mescla entre o drama de João dos aviões e a morte de George Floyd, asfixiado pelo joelho de um policial, tendo como cenário a Igreja Matriz de Salgueiro e a praça onde fica localizada a casa em que Carrero nasceu e viveu até a adolescência. A Banda Filarmônica Paroquial da cidade, da qual ele fez parte tocando requinta, provavelmente, é o modelo para a banda que aparece no conto.


Carrero ‘rouba’ do real, o isolamento social, decorrente da pandemia, o racismo e o movimento ‘Vidas negras importam’, para desmanchá-los e remontá-los em novas substâncias, transplantando-os em uma nova realidade, novas existências, vidas recriadas, habitantes fictícios da, igualmente, fictícia Arcassanta, que, como Carrero explica, é um lugar, uma cidade, pode ser um bairro ou um beco, é Salgueiro e é o Brasil.


Em ‘O país do ódio’, uma família de pretos é perseguida. O pai é assassinado, a casa é incendiada e as mulheres expulsas e caçadas. De acordo, com o próprio Carrero, o ponto de partida foi um fato real, numa localidade dentro do território de Salgueiro, a Serra do Boi Morto.


Embora todas as temáticas sejam fortes e provoquem, no leitor, as dores dos personagens, um dos contos que mais me emociona é ‘Tortura em dia de fome’, por mostrar a falta de dignidade a que a miséria reduz o ser humano. Maria e Elói foram recolhidos na rua pela mãe de Carrero. Eram de um distrito conhecido como Malhadareia. Miseráveis e famintos. Um ‘furto’ bem sucedido das memórias da infância para transmutá-lo em material de trabalho. Acredito, realmente, que não foi uma opção, mas uma imposição. O tema de Maria e Elói escolheu Carrero, mais do que Carrero a ele porque estava gritante, diante de sua sensibilidade.


E, assim, como em O senhor dos sonhos, o fim de feira se transforma em uma metáfora para a decadência do ser humano. Homens e mulheres disputam restos de alimentos com os animais:


Ao ouvir latidos e grunhidos de cachorros, ele sabia que ali se disputava restos de feira como se disputa a vida, realizada naquilo que ela tem de mais dramático e mais inquietante. Caminhar na feira nesse momento era imensamente doloroso, e cada centímetro de calçada estava marcada pela desgraça humana. Um feirante, na verdade uma sombra naquele mundo de indefinições, sem retoques, sem alvuras, deu-lhe uma batata que ele não esperava alcançar. Levou-a para o jantar, tanto tempo não se realizava.”


Dentro dessa perspectiva, é mais que uma feira-livre. É Salgueiro atravessada e revolvida. É Arcassanta, o lugar onde tudo é possível, inclusive, ser e não ser. É a Banda Filarmônica Paroquial e não é. Já não é mais a praça e a Igreja Matriz. Em Estão matando os meninos, Carrero parte de experiências reais para criar realidades autônomas. Ficção viva. O sangue do autor mantém a obra viva, mas o corpo não é dele.


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