Livro de Jussara Salazar prospecta vozes de mulheres silenciadas

 


Um dos vencedores do 6º Prêmio Hermilo Borba Filho de Literatura, ‘O dia em que fui Santa Joana dos Matadouros’, de Jussara Salazar, é dividido em três partes. Cada uma conta a história verdadeira de três mulheres silenciadas que, viveram em épocas e lugares diferentes e, apesar disso, foram juntas à guerra por meio desses poemas escassos e sombreados, escritos durante 10 anos de muitas batalhas.

O eu lírico faz um trabalho de escavação à procura de um nome. Revira baús, armários e sepulturas. Procura peças do seu próprio quebra-cabeça; determina-se a restaurar um rosto, pincelando o pó do tempo, descobrindo camadas; e, baixinho, a voz de uma certa soprano dá o ritmo do trabalho.


Zia, fogo e silêncio - Na primeira parte, a voz poética procura uma antepassada apagada do histórico familiar. Zia foi, simbolicamente, morta na fogueira, inquirida em praça pública por meio de seus pertences. Era preciso dar uma satisfação à sociedade e reafirmar que a família, a igreja e o estado estão acima da autonomia de uma mulher e ninguém contraria essas instituições sem uma punição exemplar.


A procura de Zia se dá na reconstituição do seu rosto, a partir da escavação do tempo, da memória e do encontro com outros rostos condenados ao anonimato. São muitas, ainda, as mulheres expostas publicamente e queimadas na fogueira por reagirem às violências domésticas, psicológicas, sexuais; assédios, exploração profissional e por decidirem sobre o próprio corpo.


Zia, fogo e silêncio’ fala sobre a força de um nome. Identidade, individualidade, história. Por isso, a sentença do silêncio. As lacunas na memória, na árvore familiar e na história são convenientes à sociedade patriarcal na manutenção de seus lugares de poder, mas a herança insurgente das que nos antecederam, no tempo, sempre acaba se manifestando nos netos, num contínuo apagar e resgatar, fugir e retornar, calar-se e gritar.



Maria, a degolada - A segunda parte conta a história de resistência de Maria da Conceição Bueno que, mesmo depois de assassinada, em 1893, manteve sua chama ardendo. Salazar resgata mais uma anônima silenciada por uma sociedade em que o homem tem o poder de decisão sobre a vida e a morte da mulher, uma vez que ela é sua propriedade:


(…) a cidade-maria

em nome do pai a cidade

em nome da travessia (…) ”.


A voz poética é a memória, que desencobre as camadas do esquecimento e retorna ao centro dos acontecimentos. Conversa com Maria e, a partir da própria fala dela, traça o esboço de um retrato. É um espelho necessário para o confrontamento dos rostos de uma infinidade de Marias:


(…) pois o meu deserto agora veste-se verso

meu sobrenome é o nada

que meço no olhar da madona

e me queimo

em meu tempo escasso

atravesso

onde nada vejo

e só meu corpo carrego

ao belo

a esmo

e erro (…) ”.


Apesar da violência que relata, esse conjunto de poemas afaga Bueno, exalta-a, não em seu martírio, mas em sua resistência. Empodera e alerta para a vigilância da sociedade sobre os corpos e as mentes femininas, em nome de uma falsa honra que exclui, objetifica, explora.



Lamento para Beatriz – É uma canção sobre a morte, universo tão próximo das mulheres. Ainda que se discuta ser uma função socialmente definida, costumam ser elas as cuidadoras, predominam nas profissões relacionadas ao cuidado e demonstram, mais visivelmente, a tristeza, o choro e o lamento. Elas preparam os mortos para os ritos fúnebres, rezam sobre seus corpos, pedem pelas almas, visitam as sepulturas, justamente a tônica de ‘Lamento para Beatriz’.


Embora as partes anteriores digam respeito à morte, o desfecho do tríptico encara o tema com potência e alcance dignos dos últimos suspiros da obra e de Beatriz, uma soprano que teve seu canto interrompido por uma cultura que arma os homens para reforçar sua virilidade narcísica, teoricamente bélica por natureza. Se Zia e Maria Bueno foram à guerra, Beatriz não só se une a elas, mas faz um convite amplo: “(…) quando a minha cruz for a tua guerra (…) ”. Uma esperança que tragédias dessa espécie chamem a atenção para uma mudança de consciência e de valores. É nesse sentido que Beatriz “canta entre um silêncio e outro”.


Assim, fica mais claro entender a escolha do título do livro. Salazar faz referência a uma peça de Bertolt Brechet, na qual a personagem principal, Joana Dark, é uma heroína que tem um final trágico.




Nenhum comentário:

Tecnologia do Blogger.